As Portas que Abril Abriu

Hoje é um dia que representa para Portugal o virar de página duma época negra da sua história deste país, tendo em 25 de Abril de 1974 dado termo a um regime que estagnou o país. José Carlos Ary dos Santos no poema seguinte consegue ilustar com mestria: " As portas que Abril abriu".



Era uma vez um país 
onde entre o mar e a guerra
 
vivia o mais infeliz
 
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos 
vales socalcos searas
 
serras atalhos veredas
 
lezírias e praias claras
 
um povo se debruçava
 
como um vime de tristeza
 
sobre um rio onde mirava
 
a sua própria pobreza.
Era uma vez um país 
onde o pão era contado
 
onde quem tinha a raiz
 
tinha o fruto arrecadado
 
onde quem tinha o dinheiro
 
tinha o operário algemado
 
onde suava o ceifeiro
 
que dormia com o gado
 
onde tossia o mineiro
 
em Aljustrel ajustado
 
onde morria primeiro
 
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
 
de tal maneira explorado
 
pelos consórcios fabris
 
pelo mando acumulado
 
pelas ideias nazis
 
pelo dinheiro estragado
 
pelo dobrar da cerviz
 
pelo trabalho amarrado
 
que até hoje já se diz
 
que nos tempos do passado
 
se chamava esse país
 
Portugal suicidado.
Ali nas vinhas sobredos 
vales socalcos searas
 
serras atalhos veredas
 
lezírias e praias claras
 
vivia um povo tão pobre
 
que partia para a guerra
 
para encher quem estava podre
 
de comer a sua terra.
Um povo que era levado 
para Angola nos porões
 
um povo que era tratado
 
como a arma dos patrões
 
um povo que era obrigado
 
a matar por suas mãos
 
sem saber que um bom soldado
 
nunca fere os seus irmãos.
Ora passou-se porém 
que dentro de um povo escravo
 
alguém que lhe queria bem
 
um dia plantou um cravo.
Era a semente da esperança 
feita de força e vontade
 
era ainda uma criança
 
mas já era a liberdade.
Era já uma promessa 
era a força da razão
 
do coração à cabeça
 
da cabeça ao coração.
 
Quem o fez era soldado
 
homem novo capitão
 
mas também tinha a seu lado
 
muitos homens na prisão.
Esses que tinham lutado 
a defender um irmão
 
esses que tinham passado
 
o horror da solidão
 
esses que tinham jurado
 
sobre uma côdea de pão
 
ver o povo libertado
 
do terror da opressão.
Não tinham armas é certo 
mas tinham toda a razão
 
quando um homem morre perto
 
tem de haver distanciação
uma pistola guardada 
nas dobras da sua opção
 
uma bala disparada
 
contra a sua própria mão
 
e uma força perseguida
 
que na escolha do mais forte
 
faz com que a força da vida
 
seja maior do que a morte.
Quem o fez era soldado 
homem novo capitão
 
mas também tinha a seu lado
 
muitos homens na prisão.
Posta a semente do cravo 
começou a floração
 
do capitão ao soldado
 
do soldado ao capitão.
Foi então que o povo armado 
percebeu qual a razão
 
porque o povo despojado
 
lhe punha as armas na mão.
Pois também ele humilhado 
em sua própria grandeza
 
era soldado forçado
 
contra a pátria portuguesa.
Era preso e exilado 
e no seu próprio país
 
muitas vezes estrangulado
 
pelos generais senis.
Capitão que não comanda 
não pode ficar calado
 
é o povo que lhe manda
 
ser capitão revoltado
 
é o povo que lhe diz
 
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
 
do ventre duma chaimite.
Porque a força bem empregue 
contra a posição contrária
 
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
Disse a primeira palavra 
na madrugada serena
 
um poeta que cantava
 
o povo é quem mais ordena.
E então por vinhas sobredos 
vales socalcos searas
 
serras atalhos veredas
 
lezírias e praias claras
 
desceram homens sem medo
 
marujos soldados «páras»
 
que não queriam o degredo
 
dum povo que se separa.
 
E chegaram à cidade
 
onde os monstros se acoitavam
 
era a hora da verdade
 
para as hienas que mandavam
 
a hora da claridade
 
para os sóis que despontavam
 
e a hora da vontade
 
para os homens que lutavam.
Em idas vindas esperas 
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
 
arrancaram-se as mordaças
 
e o povo saiu à rua
 
com sete pedras na mão
 
e uma pedra de lua
 
no lugar do coração.
Dizia soldado amigo 
meu camarada e irmão
 
este povo está contigo
 
nascemos do mesmo chão
 
trazemos a mesma chama
 
temos a mesma ração
 
dormimos na mesma cama
 
comendo do mesmo pão.
 
Camarada e meu amigo
 
soldadinho ou capitão
 
este povo está contigo
 
a malta dá-te razão.
Foi esta força sem tiros 
de antes quebrar que torcer
 
esta ausência de suspiros
 
esta fúria de viver
 
este mar de vozes livres
 
sempre a crescer a crescer
 
que das espingardas fez livros
 
para aprendermos a ler
 
que dos canhões fez enxadas
 
para lavrarmos a terra
 
e das balas disparadas
 
apenas o fim da guerra.
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril f
ez Portugal renascer.
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
Mesmo que tenha passado 
às vezes por mãos estranhas
 
o poder que ali foi dado
 
saiu das nossas entranhas.
 
Saiu das vinhas sobredos
 
vales socalcos searas
 
serras atalhos veredas
 
lezírias e praias claras
 
onde um povo se curvava
 
como um vime de tristeza
 
sobre um rio onde mirava
 
a sua própria pobreza.
E se esse poder um dia 
o quiser roubar alguém
 
não fica na burguesia
 
volta à barriga da mãe.
 
Volta à barriga da terra
 
que em boa hora o pariu
 
agora ninguém mais cerra
 
as portas que Abril abriu.
Essas portas que em Caxias 
se escancararam de vez
 
essas janelas vazias
 
que se encheram outra vez
 
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
 
que espreitavam como espias
 
todo o povo português.
Agora que já floriu 
a esperança na nossa terra
 
as portas que Abril abriu
 
nunca mais ninguém as cerra.
Contra tudo o que era velho 
levantado como um punho
 
em Maio surgiu vermelho
 
o cravo do mês de Junho.
Quando o povo desfilou 
nas ruas em procissão
 
de novo se processou
 
a própria revolução.
Mas eram olhos as balas 
abraços punhais e lanças
 
enamoradas as alas
 
dos soldados e crianças.
E o grito que foi ouvido 
tantas vezes repetido
 
dizia que o povo unido
 
jamais seria vencido.
Contra tudo o que era velho 
levantado como um punho
 
em Maio surgiu vermelho
 
o cravo do mês de Junho.
E então operários mineiros 
pescadores e ganhões
 
marçanos e carpinteiros
 
empregados dos balcões
 
mulheres a dias pedreiros
 
reformados sem pensões
 
dactilógrafos carteiros
 
e outras muitas profissões
 
souberam que o seu dinheiro
 
era presa dos patrões.
A seu lado também estavam 
jornalistas que escreviam
 
actores que se desdobravam
 
cientistas que aprendiam
 
poetas que estrebuchavam
 
cantores que não se vendiam
 
mas enquanto estes lutavam
 
é certo que não sentiam
 
a fome com que apertavam
 
os cintos dos que os ouviam.
Porém cantar é ternura 
escrever constrói liberdade
 
e não há coisa mais pura
 
do que dizer a verdade.
E uns e outros irmanados 
na mesma luta de ideais
 
ambos sectores explorados
 
ficaram partes iguais.
Entanto não descansavam 
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
 
silêncios boatos murmúrios
 
risinhos que se calavam
 
palácios contra tugúrios
 
fortunas que levantavam
 
promessas de maus augúrios
 
os que em vida se enterravam
 
por serem falsos e espúrios
 
maiorais da minoria
 
que diziam silenciosa
 
e que em silêncio fazia
 
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
 
e com ordenados régios
 
o alvor do socialismo
 
e o fim dos privilégios.
Foi então se bem vos lembro 
que sucedeu a vindima
 
quando pisámos Setembro
 
a verdade veio acima.
E foi um mosto tão forte 
que sabia tanto a Abril
 
que nem o medo da morte
 
nos fez voltar ao redil.
Ali ficámos de pé 
juntos soldados e povo
 
para mostrarmos como é
 
que se faz um país novo.
Ali dissemos não passa! 
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
 
odeia a quem desgraçou.
Foi a força do Outono 
mais forte que a Primavera
 
que trouxe os homens sem dono
 
de que o povo estava à espera.
Foi a força dos mineiros 
pescadores e ganhões
 
operários e carpinteiros
 
empregados dos balcões
 
mulheres a dias pedreiros
 
reformados sem pensões
 
dactilógrafos carteiros
 
e outras muitas profissões
 
que deu o poder cimeiro
 
a quem não queria patrões.
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
Porém em quintas vivendas 
palácios e palacetes
 
os generais com prebendas
 
caciques e cacetetes
 
os que montavam cavalos
 
para caçarem veados
 
os que davam dois estalos
 
na cara dos empregados
 
os que tinham bons amigos
 
no consórcio dos sabões
 
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
 
os generais subalternos
 
que aceitavam os patrões
 
os generais inimigos
 
os generais garanhões
 
teciam teias de aranha
 
e eram mais camaleões
 
que a lombriga que se amanha
 
com os próprios cagalhões.
 
Com generais desta apanha
 
já não há revoluções.
Por isso o onze de Março 
foi um baile de Tartufos
 
uma alternância de terços
 
entre ricaços e bufos.
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
Fugiram como cobardes 
e para terras de Espanha
 
os que faziam alardes
 
dos combates em campanha.
E aqui ficaram de pé 
capitães de pedra e cal
 
os homens que na Guiné
 
aprenderam Portugal.
Os tais homens que sentiram 
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
 
consciência nacional.
Os tais homens que souberam 
fazer a revolução
 
porque na guerra entenderam
 
o que era a libertação.
Os que viram claramente 
e com os cinco sentidos
 
morrer tanta tanta gente
 
que todos ficaram vivos.
Os tais homens feitos de aço 
temperado com a tristeza
 
que envolveram num abraço
 
toda a história portuguesa.
Essa história tão bonita 
e depois tão maltratada
 
por quem herdou a desdita
 
da história colonizada.
Dai ao povo o que é do povo 
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
 
nos poemas de Camões!
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
Foi este lado da história 
que os capitães descobriram
 
que ficará na memória
 
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram 
o nosso abraço profundo
 
aos povos que agora deram
 
novos países ao mundo.
Por saberem como é 
ficaram de pedra e cal
 
capitães que na Guiné
 
descobriram Portugal.
E em sua pátria fizeram 
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
 
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
 
que ficarão a render
 
ao invés dos monopólios
 
para o trabalho crescer.
 
Guindastes portos navios
 
e outras coisas para erguer
 
antenas centrais e fios
 
dum país que vai nascer.
Mesmo que seja com frio 
é preciso é aquecer
 
pensar que somos um rio
 
que vai dar onde quiser
pensar que somos um mar 
que nunca mais tem fronteiras
 
e havemos de navegar
 
de muitíssimas maneiras.
No Minho com pés de linho 
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
 
na Beira com requeijão
 
e trocando agora as voltas
 
ao vira da produção
 
no Alentejo bolotas
 
no Algarve maçapão
 
vindimas no Alto Douro
 
tomates em Azeitão
 
azeite da cor do ouro
 
que é verde ao pé do Fundão
 
e fica amarelo puro
 
nos campos do Baleizão.
 
Quando a terra for do povo
 
o povo deita-lhe a mão!
É isto a reforma agrária 
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
 
de que nós temos um quinhão
 
da semente proletária
 
da nossa revolução.
Quem a fez era soldado 
homem novo capitão
 
mas também tinha a seu lado
 
muitos homens na prisão.
De tudo o que Abril abriu 
ainda pouco se disse
 
um menino que sorriu
 
uma porta que se abrisse
 
um fruto que se expandiu
 
um pão que se repartisse
 
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
 
e entre vinhas sobredos
 
vales socalcos searas
 
serras atalhos veredas
 
lezírias e praias claras
 
um povo que levantava
 
sobre um rio de pobreza
 
a bandeira em que ondulava
 
a sua própria grandeza!
 
De tudo o que Abril abriu
 
ainda pouco se disse
 
e só nos faltava agora
 
que este Abril não se cumprisse.
 
Só nos faltava que os cães
 
viessem ferrar o dente
 
na carne dos capitães
 
que se arriscaram na frente.
Na frente de todos nós 
povo soberano e total
 
que ao mesmo tempo é a voz
 
e o braço de Portugal.
Ouvi banqueiros fascistas 
agiotas do lazer
 
latifundiários machistas
 
balofos verbos de encher
 
e outras coisas em istas
 
que não cabe dizer aqui
 
que aos capitães progressistas
 
o povo deu o poder!
 
E se esse poder um dia
 
o quiser roubar alguém
 
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
 
Volta à barriga da terra
 
que em boa hora o pariu
 
agora ninguém mais cerra
 
as portas que Abril abriu!

José Carlos Ary dos Santos




2 comentários:

cathoune disse...

Coucou Antonio
une petite pensée déposée sur ton blog pour venir voir comment tu vas... Tu as mis un poème qui est un symbole pour ton pays... Mais je ne comprends pas tout, la traduction mot à mot ne donne pas toujours l'exacte traduction, mais un sens seulement appoximatif... je comprends juste qu'il y a eu un traumatisme profond dans ton pays et que tu en attends des choses meilleures...
De plus, il est rudement long - ce poème...
Demain, le premier mai, c'est pour ça, que tu as mis un oeillet ??
Nous, la fleur symbole du 1er mai, chez nous (qui est censé porté chance) est le muguet...
Je pense aussi que l'heure est grave, et qu'on a tous besoin d'espoir...
J'espère que tu vas bien ainsi que ta famille, et je te fais plein de grosses bises de ma part et de celle d'Eugénio - à bientot
bises cathy

cathoune disse...

coucou Antonio...
ça va ?? ce soir, j'ai pensé à toi, il y avait le foot à la télé, ton pays n'a pas gagné, pas grave, la prochaine fois...
Je vois qu'il n'y a que moi, qui vient sur ton blog ! comment ça se fait ??
et bien, je suis ta fan N° 1
Bisous à toi et à toute ta famille
cathoune

Enviar um comentário

 
Home | Gallery | Tutorials | Freebies | About Us | Contact Us

Copyright © 2009 Devaneios de Vida |Designed by Templatemo |Converted to blogger by BloggerThemes.Net

Usage Rights

DesignBlog BloggerTheme comes under a Creative Commons License.This template is free of charge to create a personal blog.You can make changes to the templates to suit your needs.But You must keep the footer links Intact.