Não pretendemos que as coisas
mudem, se sempre fazemos o mesmo. A crise é a melhor bênção que pode ocorrer
com as pessoas e países, porque a crise pode trazer progresso. A criatividade nasce
da angústia, como o dia nasce da noite escura. Quem supera a crise, supera a si
mesmo sem ficar ‘superado’. Quem atribui à crise seus fracassos e penúrias,
violenta seu próprio talento e respeita mais os problemas do que as soluções. A
verdadeira crise é a crise da incompetência... Nesta crise instaurada no mundo
por um vírus é o preço da virulência desenfreada que devasta a Terra por um dos
animais mais agressivos para o ambiente que é a espécie humana, é o preço da
globalização desenfreada e de uma sociedade mais interessada com o ter duma
forma egoísta. É a primeira vez nos últimos 100 anos que uma epidemia ataca os
países ricos que assobiavam para o ar quando epidemias e fome matavam diariamente nos países mais pobres, limitando-se na maioria dos casos a
medidas caritativas que chamavam humanitárias, mas provavelmente financiava-se
mais guerrilhas e ódios para alimentar um novo poder neocolonial com interesses
estratégicos económicos e políticos. É óbvio que a economia é inerente à
civilização humana, mas sem homens não há economia e também não nos esqueçamos
que foram os mais velhos que nos legaram o que temos e somos.
No fundo a nossa irracionalidade
é a parte submersa no iceberg da nossa racionalidade. Irracionalmente os
animais adaptam-se ao ambiente e às múltiplas adversidades que lhe vão surgindo
ao longo da história da terra e como nada é eterno alguns pereceram. Alguns
animais mudaram hábitos e até se juntaram aos homens prestando-lhe inicialmente
vassalagem em troca de comida e abrigo, como foram os cães ou mesmo os gatos.
Eles mantem-se fieis a essa opção e os homens à medida que vão subindo na
escala da civilização racional, irracionalmente, vão humanizando-os, esquecendo
que eles são coabitantes do mesmo planeta, mas de espécies diferentes, com propósitos
e instintos diferentes. Porém o facto de eles a cada dia darem através da sua
fidelidade e dedicação com quem vivem lições de humanismo aos humanos. Um
cão é sempre um cão, mas um cão pode ser um grande amigo, porque a amizade pode
ser transversal às espécies. A amizade e dedicação é talvez o mais nobre
sentimento entre dois seres. Um cão estará sempre presente nos momentos da vida
a quem se dedica, mesmo quando estivermos em baixo ou cairmos, eles ficam ao
nosso lado, não podem fazer muito pelas limitações fisionómicas da espécie,
usam os seus instintos de alerta e voltam para apoiarem com a sua presença.
Quantos humanos desarmam amizades quando vêm os amigos a cair, na ausência ou
na dor? Talvez alguns que ainda se orgulhem em ser... As amizades são mais que
meras relações sociais ou de interesse no fundo é uma ligação tão tetraédrica
como a do diamante, por isso tão valiosa. Pensando duma forma simplista,
talvez os cães na sua ascensão civilizacional percebessem que a amizade e proteção
eram um tributo muito elevado pela guarida e apoio que a civilização humana lhe
deu num momento de crise e privação e esse foi o seu pagamento, instintivamente
mantem-se fieis a esse princípio mesmo quando a civilização humana é ingrata e
cruel.
Muitas lições de amizade aprendi
com esses animais que fizeram parte da minha vida e num colorido de memórias
nasce esta homenagem ao Afonso, o meu Basset Hound, sempre presente na minha
vida: nos momentos altos, nas quedas, na
solidão, nas dores e na alegria, serenamente como o mar mais flat ou numa
agitação envolvente dum maremoto. Vale a pena ter amigos assim, ele nunca vai entender as cores e os riscos que as memórias me inculcaram na tela, mas
entende quanto é gratificante esta relação cúmplice e afetuosa entre dois coabitantes
do mesmo espaço e tempo, ele sempre cão, eu sempre homem, em mundos paralelos
tivemos a oportunidade de comunicamos e partilhamos cumplicidades. Afinal, até na
sua exatidão matemática a física afirma que dois corpos em trajeto paralelo no
espaço têm sempre a oportunidade de se encontrarem, na vida não há garantias ou
promessas... apenas possibilidades e oportunidades.
Pensem nisso
António Veiga